quinta-feira, 28 de setembro de 2017

A morte do sagrado feminino

Após alguns dias de digestão me sinto impelida a escrever sobre o novo filme do Darren Aronofsky, "Mother!". Precisei  de dias para digerir o conteúdo, quase uma orgia de símbolos, informações, metáforas culminando com uma imensa falta de ar e uma sensação de soco na boca do estômago.  Essas foram as sensações físicas...as emocionais mal consigo descrevê-las...

Repulsa, aversão, angústia, raiva, medo e finalmente pavor...pânico...quando percebi exatamente o que estava sendo dito em toda aquela alegoria, e quando percebi a cruel e absoluta verdade, mais do que verdade, fidelidade à nossa realidade. Surreal? Na minha opinião de surreal esse filme não tem nada. Ele expressa de forma simbólica com detalhes fiéis (e cruéis) a nossa civilização. E a conclusão aterradora: nós matamos o sagrado feminino.

As relações arquetípicas feitas no filme são maravilhosas: a Casa, a Mãe, a Mulher,  a Natureza, o Lar, a Terra. Na linguagem arquetípica todos esses símbolos são representações do Feminino "maior", a Deusa, a "Grande Mãe" ou o "Sagrado feminino". Quando eu falo de feminino não estou falando necessariamente de gênero, mas sim da energia "Yin", que é expressa no filme através da Jennifer Lawrence, ela é a Mãe, ela é a Deusa, a "Musa inspiradora", ela é a Casa, ela é o Lar, ela é o planeta Terra.


Tudo no universo contém as duas energias Yin (energia feminina primordial, arquetípica), e Yang (energia masculina primordial, arquetípica) e essas energias são complementares, uma não existe sem a outra. Nossa busca deveria ser pela integração e complementaridade de ambas, mas em nossa sociedade (e obviamente dentro de nós) parece que elas estão sempre em guerra, competindo ou se desqualificando uma a outra, não se ouvem, não se buscam, não se integram e assim nasce todo o desequilíbrio da sociedade atual.

Javier Bardem representa a energia Yang: sempre pra fora, sempre "em busca de..." e com a grande tendência ao poder e a centralização deste em si mesmo, e a enorme dificuldade de ouvir o "chamado" da energia Yin, seja esta expressa pelo inconsciente, pela intuição ou pelo feminino.  É bom lembrar sempre que não há nenhuma relação com gêneros ou generalização nesses conceitos, estas são características de duas energias que todos nós temos dentro da gente e precisamos aprender a equilibrar.

Voltando ao filme, no filme sim há uma expressão mais clara dessa energia yang e de toda a sua sombra: O patriarcado. Javier Bardem representa "ELE" ou "Deus". Como mesmo  é que chegamos a ter um deus personifcado no gênero masculino em nossa sociedade?  A intuição é Yin, a natureza é Yin, a religiosidade é Yin, o "olhar pra dentro" é Yin, e mesmo assim o patriarcado, disfarçado de cristianismo (principalmente no ocidente),  matou a grande mãe e implacou um deus homem.

O filme vai mostrando passo a passo desse assassinato do feminino sagrado que foi feito principalmente pela religião cristã, mas não apenas, também pela nossa sociedade, (e afinal uma coisa está totalmente ligada à outra, infelizmente).  Desde à "desobediência feminina", mito da religião cristã, expresso no filme através da Michelle Pfeiffer, entrando no local proibido e quebrando a pedra preciosa (metáfora para Eva comendo a maçã), até o ápice de seu esgotamento, passando por cenas confusas e fortíssimas que mostram claramente a hipervalorização da energia Yang e o sufocamento da energia Yin.


Cada vez que "Ele" não ouve o chamado "Dela", ela morre um pouquinho...A casa estremece, fica cinza de novo... Porque juntos, e apenas juntos, eles poderiam manter a vida. Ele se distancia cada vez mais e permite cada vez mais a invasão, a destruição e o exagero em pró de seus próprios objetivos egóicos. E ela...e a casa, o lar...morrendo aos pouquinhos...

Isso soa familiar pra você? A Terra é a grande mãe, é a nossa casa, mas escolhemos não olhar para toda a destruição que nos cerca, optamos por ignorar suas necessidades e seguir destruindo, em pró de nossos próprios objetivos pessoais, egóicos...quem se importa com o desmatamento, com as queimadas, com a poluição, aquecimento global,  e com todos os excessos em nossa alimentação e em nosso estilo de vida que colabora para destruir o local em que nascemos e vivemos? Ah, sim! Todos dizem que se importam, mas não mudam uma vírgula em suas rotinas. Assim como ele repetiu diversas vezes no filme o quanto a amava, mas não mudava em uma vírgula as suas ações.

E que mulher que nunca se sentiu invadida, abusada, explorada e muitas vezes, destruída pela sociedade patriarcal? Não estou querendo aqui levantar um discurso feminista, mas olhando de uma forma social e histórica, nós mulheres sabemos o que é a sensação angustiante mostrada várias vezes no filme de gritar e não ser ouvida; de tentar impor seus limites e não ser respeitada, seja pelo outro, pela sociedade ou pela religião.

Afinal, quem é Maria para os cristãos? Apenas a mãe..."apenas" a mãe...algumas vertentes do cristianismo até lembram dela de vez em quando, já outras não podem nem ouvir falar! Eu mesma já escutei a frase "ela era só a mãe do grande senhor Jesus". Só a mãe. SÓ.

A mulher que deu à vida ao "salvador", sem ela ele nem existiria, salvador aliás que foi morto pela mesma sociedade que negou o seu valor...negou o seu valor e matou o seu filho. E se reclamar, te mata também.  E essa, na minha opinião, foi a cena mais forte do filme...quase insuportável pra mim depois de toda a angústia... E o cristianismo continuou simbolicamente e efetivamente matando o feminino, a energia feminina, e as próprias mulheres, tantas queimadas durante a inquisição.

A energia feminina é doadora por natureza. Não importa o quanto a gente tire da Terra, ela continuará florescendo em seus ciclos... se tirarmos demais, muito mesmo, talvez ela seque por completo. Porém ela vai florescer e dar frutos enquanto ela puder. E assim, a "Deusa", oferece, mesmo depois de tudo isso, o seu último pedaço: O Amor, para que "Ele" possa recomeçar...se doou por inteiro. Literalmente. Até acabar. É isso que nossa sociedade faz com o princípio feminino: esgota. Usa o seu potencial natural de doação, até esgotar...



E assim Darren Aronofsky nos contou, de forma genial na minha opinião, o triste conto sobre como o patriarcado matou o sagrado feminino. Mas os arquétipos nunca morrem, eles estão vivos, vibrantes dentro de cada um de nós. Não importa se você se identifica como homem , como mulher ou com nenhum desses dois gêneros...O feminino existe dentro de você.  E é apenas através da energia feminina (Yin) que será possível uma integração e uma transformação nesse triste processo em que vivemos. Não é através da guerra, não é através da raiva, não é através da discriminação ou separação...como Aronofsky e sua Deusa mostraram lindamente no filme: é através do Amor que temos alguma chance de recomeçar. 

Um comentário:

  1. Genial. O filme. Genial o seu texto psicanalítico. Genial sua coragem de expor seu ponto de vista e inspirar pessoas a se tratarem. Se curarem . A Genialidade está nas pequenas e sutis mudanças das grandes visões.

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