Após alguns dias de digestão me
sinto impelida a escrever sobre o novo filme do Darren Aronofsky,
"Mother!". Precisei de dias
para digerir o conteúdo, quase uma orgia de símbolos, informações, metáforas culminando
com uma imensa falta de ar e uma sensação de soco na boca do estômago. Essas foram as sensações físicas...as
emocionais mal consigo descrevê-las...
Repulsa, aversão, angústia,
raiva, medo e finalmente pavor...pânico...quando percebi exatamente o que
estava sendo dito em toda aquela alegoria, e quando percebi a cruel e absoluta
verdade, mais do que verdade, fidelidade à nossa realidade. Surreal? Na minha
opinião de surreal esse filme não tem nada. Ele expressa de forma simbólica com
detalhes fiéis (e cruéis) a nossa civilização. E a conclusão aterradora: nós
matamos o sagrado feminino.
As relações arquetípicas feitas
no filme são maravilhosas: a Casa, a Mãe, a Mulher, a Natureza, o Lar, a Terra. Na linguagem
arquetípica todos esses símbolos são representações do Feminino
"maior", a Deusa, a "Grande Mãe" ou o "Sagrado
feminino". Quando eu falo de feminino não estou falando necessariamente de
gênero, mas sim da energia "Yin", que é expressa no filme através da
Jennifer Lawrence, ela é a Mãe, ela é a Deusa, a "Musa inspiradora", ela
é a Casa, ela é o Lar, ela é o planeta Terra.
Tudo no universo contém as duas
energias Yin (energia feminina primordial, arquetípica), e Yang (energia masculina primordial, arquetípica) e essas energias são complementares, uma não existe sem a
outra. Nossa busca deveria ser pela integração e complementaridade de ambas,
mas em nossa sociedade (e obviamente dentro de nós) parece que elas estão
sempre em guerra, competindo ou se desqualificando uma a outra, não se ouvem,
não se buscam, não se integram e assim nasce todo o desequilíbrio da sociedade
atual.
Javier Bardem representa a
energia Yang: sempre pra fora, sempre "em busca de..." e com a grande
tendência ao poder e a centralização deste em si mesmo, e a enorme dificuldade
de ouvir o "chamado" da energia Yin, seja esta expressa pelo
inconsciente, pela intuição ou pelo feminino.
É bom lembrar sempre que não há nenhuma relação com gêneros ou
generalização nesses conceitos, estas são características de duas energias que
todos nós temos dentro da gente e precisamos aprender a equilibrar.
Voltando ao filme, no filme sim
há uma expressão mais clara dessa energia yang e de toda a sua sombra: O
patriarcado. Javier Bardem representa "ELE" ou "Deus".
Como mesmo é que chegamos a ter um deus
personifcado no gênero masculino em nossa sociedade? A intuição é Yin, a natureza é Yin, a
religiosidade é Yin, o "olhar pra dentro" é Yin, e mesmo assim o
patriarcado, disfarçado de cristianismo (principalmente no ocidente), matou a grande mãe e implacou um deus homem.
O filme vai mostrando passo a
passo desse assassinato do feminino sagrado que foi feito principalmente pela
religião cristã, mas não apenas, também pela nossa sociedade, (e afinal uma
coisa está totalmente ligada à outra, infelizmente). Desde à "desobediência feminina",
mito da religião cristã, expresso no filme através da Michelle Pfeiffer,
entrando no local proibido e quebrando a pedra preciosa (metáfora para Eva
comendo a maçã), até o ápice de seu esgotamento, passando por cenas confusas e
fortíssimas que mostram claramente a hipervalorização da energia Yang e o
sufocamento da energia Yin.
Cada vez que "Ele" não
ouve o chamado "Dela", ela morre um pouquinho...A casa estremece,
fica cinza de novo... Porque juntos, e apenas juntos, eles poderiam manter a
vida. Ele se distancia cada vez mais e permite cada vez mais a invasão, a
destruição e o exagero em pró de seus próprios objetivos egóicos. E ela...e a
casa, o lar...morrendo aos pouquinhos...
Isso soa familiar pra você? A
Terra é a grande mãe, é a nossa casa, mas escolhemos não olhar para toda a
destruição que nos cerca, optamos por ignorar suas necessidades e seguir
destruindo, em pró de nossos próprios objetivos pessoais, egóicos...quem se
importa com o desmatamento, com as queimadas, com a poluição, aquecimento global, e com todos os
excessos em nossa alimentação e em nosso estilo de vida que colabora para
destruir o local em que nascemos e vivemos? Ah, sim! Todos dizem que se
importam, mas não mudam uma vírgula em suas rotinas. Assim como ele repetiu
diversas vezes no filme o quanto a amava, mas não mudava em uma vírgula as suas
ações.
E que mulher que nunca se sentiu invadida,
abusada, explorada e muitas vezes, destruída pela sociedade patriarcal? Não
estou querendo aqui levantar um discurso feminista, mas olhando de uma forma
social e histórica, nós mulheres sabemos o que é a sensação angustiante
mostrada várias vezes no filme de gritar e não ser ouvida; de tentar impor seus
limites e não ser respeitada, seja pelo outro, pela sociedade ou pela religião.
Afinal, quem é Maria para os
cristãos? Apenas a mãe..."apenas" a mãe...algumas vertentes do
cristianismo até lembram dela de vez em quando, já outras não podem nem ouvir
falar! Eu mesma já escutei a frase "ela era só a mãe do grande senhor
Jesus". Só a mãe. SÓ.
A mulher que deu à vida ao
"salvador", sem ela ele nem existiria, salvador aliás que foi morto
pela mesma sociedade que negou o seu valor...negou o seu valor e matou o seu
filho. E se reclamar, te mata também. E
essa, na minha opinião, foi a cena mais forte do filme...quase insuportável pra
mim depois de toda a angústia... E o cristianismo continuou simbolicamente e
efetivamente matando o feminino, a energia feminina, e as próprias mulheres,
tantas queimadas durante a inquisição.
A energia feminina é doadora por
natureza. Não importa o quanto a gente tire da Terra, ela continuará
florescendo em seus ciclos... se tirarmos demais, muito mesmo, talvez ela seque
por completo. Porém ela vai florescer e dar frutos enquanto ela puder. E assim,
a "Deusa", oferece, mesmo depois de tudo isso, o seu último pedaço: O
Amor, para que "Ele" possa recomeçar...se doou por inteiro.
Literalmente. Até acabar. É isso que nossa sociedade faz com o princípio
feminino: esgota. Usa o seu potencial natural de doação, até esgotar...
E assim Darren Aronofsky nos contou,
de forma genial na minha opinião, o triste conto sobre como o patriarcado matou
o sagrado feminino. Mas os arquétipos nunca morrem, eles estão vivos, vibrantes
dentro de cada um de nós. Não importa se você se identifica como homem , como
mulher ou com nenhum desses dois gêneros...O feminino existe dentro de você. E é apenas através da energia feminina (Yin)
que será possível uma integração e uma transformação nesse triste processo em
que vivemos. Não é através da guerra, não é através da raiva, não é através da
discriminação ou separação...como Aronofsky e sua Deusa mostraram lindamente no
filme: é através do Amor que temos alguma chance de recomeçar.
Genial. O filme. Genial o seu texto psicanalítico. Genial sua coragem de expor seu ponto de vista e inspirar pessoas a se tratarem. Se curarem . A Genialidade está nas pequenas e sutis mudanças das grandes visões.
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