quinta-feira, 30 de julho de 2020

Sharp Objects inside us...

Fazia muito tempo que uma personagem não me chamava tanta atenção quanto Camille Preaker. Eu me encantei por ela, não sei bem o porquê. Seu ar misterioso, sua beleza enigmática, seu comportamento blasé escondendo uma profundeza infinita de emoções obscuras...Eu acho que o que mais me encantou na Camille foi exatamente essa profundeza. É como se ninguém soubesse quem ela é, além dela mesma. E todos os seus segredos a consumissem e a fortalecessem ao mesmo tempo, pois ela é a úica que os conhece e esse é o seu poder. Ela sabe exatamente quem ela é, e não espera nem mais nem menos de si mesma. Apesar de tudo o que sofreu me parece que cada ação dela é consciente e determinada pela sua força. Ela é Sacerdotisa de si mesma. 

Na análise do meu olhar, talvez um pouco apaixonado, até a sua auto destruição não me soa como descontrole. É como se ela escolhesse a dor a cada momento. Afinal a dor auto imposta é uma forma de controle. É um alívio controlar a própria dor. A vodka disfarçada de água e os cortes disfarçados de emoções, nas palavras que ressoaram tanto em sua mente que se cristalizaram em seu corpo. Tudo nela é disfarçado. A vida se disfarça de morte, como quando ela se corta proposital e tranquilamente para entrar em um exílio; e às vezes a morte se disfarça de vida, como quando ela volta à sua cidade natal para investigar um assassinato, e ali começar a reviver... viver outra vez. Os disfarces são úteis quando não podemos confiar. E como poderia Camille confiar, se tudo o que ela teve sempre foi apenas ela mesma?

A história mostra a sua independencia desde criança, uma independencia que gerava uma enorme solidão. E a morte sempre presente levando consigo os poucos encontros significativos. Não é estranho que ela tenha se fechado tanto em si mesma. Enquanto o outro a olha e nada consegue ver, cada cena dela sozinha em seu carro ouvindo música na estrada a noite é um êxtase de informações e emoções demonstrando que ela é na verdade um universo infinito. Mas as estrelas desse universo sempre implodiram ao invés de explodirem, e estrelas que implodem formam buracos negros...

Não há como não falar da Mãe. A Mãe com letra maiúscula. Esse arquétipo que exalta e atormenta à todas nós mulheres, desde o minuto em que nascemos. Recentemente li em um texto de uma mulher que dizia que existiram em nossa história mulheres que só foram livres no útero. Essa perspectiva me chocou bastante e penso que ela é bem real. O conjunto de regras e imposições que envolvem a ciração de um ser em sociedade me dá arrepios. Sendo um ser do "gênero feminino" essas regras e imposições se multiplicam e me dão calafrios. E não há como fugir disso, esse é o maior terror. Isso fica bem explícito no lindo filme "Capitão Fantástico", que é terrivelmente maravilhoso, e ao final me deu tristeza. Não há como fugir desse sistema repressivo e opressor. Voltando à Mãe, qual a primeira coisa que pensamos quando pensamos em uma mãe ideal? Acredito que Cuidado é uma das primeiras palavras que vêm, e nesse quesito Adora, mãe de Camille, era então uma mãe ideal. 

A Deméter devoradora é mostrada bem claramente nessa personagem. E de novo me surge o tormento da maternidade, como querer que um ser humano ocupe um lugar arquetípico? Isso certemante será enlouquecedor. Me pergunto se foi isso que aconteceu com Adora, e se é isso que acontece com muitas mulheres, adoecem e enlouquecem na tentativa de se tornarem um arquétipo, se perdem porque esquecem da sua individualidade como seres humanos. Não querem ser uma mãe humana. Querem ser A Mãe. 

E dessa relação adoecida de poder e repressão é que vai ser formando a Camille adulta que vemos na história. A falta de amor é inerente, pois como bem nos disse Jung "onde há poder não pode haver amor, pois um é a sombra do outro." Sem amor Camille cresce em uma cidade tão devoradora quanto a sua mãe. E as situações abusivas se repetem com Camille, fora de casa, é claro, já que abuso foi a base de suas relações e tudo o que ela conheceu, ele se repete. Ela permanece em uma passividade forte. Uma passividade que incomoda a quem vê, mas em algum nível parece uma escolha. Ela escolhe implodir. Ela escolhe ser buraco negro. Porque talvez ela saiba que a sua supernova fosse destruir o universo inteiro... Como é com a sua irmã mais nova Amma, ela sim foi a estrela que explodiu, a supernova destruidora. Camille não, ela protege seus abusadores de um jeito estranho, como se fingisse que nada a atinge e isso fosse parte de sua força. Como se assim ela mesma se sentisse superior e intocável. Só ela se toca. E ela se machuca. Mas ela protege o seu mundo interior. A sua pele é a sua couraça, e ela a torna ameaçadora e repelente como uma forma de proteção.  

Nas poucas relações em que se envolve, como com o seu chefe que ocupa um lugar paternal em sua vida, e com o delegado que se envolve de forma romântica, fica visível o quanto ela, no fundo, está desesperada por amor. Desesperada por sentir qualquer coisa que não seja dor ou nada. Às vezes o nada é pior do que a dor. E por isso às vezes o nada justifica a dor. Nada é pior do que o vazio. 

E falando em vazio...até hoje eu não entendi exatamente a função da cabana no meio do mato. É como se ela representasse um refúgio e ao mesmo tempo a armadilha. Talvez ela represente a tensão entre todos esses opostos: dor e o prazer, os desejos e a repressão, a vida e a morte. Será que na tensão dos opostos é onde está o refúgio e também a armadilha? 
Mas como se libertar dessa tensão neurótica?

Eu não sei essa resposta...e nem Camille...ela parecia se curar através do cuidar de Amma, assim como sua mãe acreditava se redimir no cuidar, novamente o arquétipo materno roubando a individualidade feminina. Ela nem parece mais a mesma Camille no fim da série, será que só eu não achei isso bom? A cura continuava projetada no outro. Novamente o refúgio que é uma armadilha. Enquanto a cura estiver no outro, não é cura.  O que será que acontece com ela quando ela percebe que a irmã era a assassina? Quando ela percebe que seu objeto de cuidado não é o que ela esperava e que seu cuidado foi em vão? Onde fica a sua cura nesse momento?
A série deixa em aberto. Porém eu li que no livro originalmente ela tem um surto, o que faz todo sentido. Chega um momento que não há mais espaço para implosões...

No fim eu penso que essa história é sobre o feminino e o peso da busca pelo nosso lugar de pertencimento. Deveríamos ser cuidadoras acima de tudo? Cuidar do outro é o nosso dom e valor? Ou deveríamos ser sedutoras e sensuais, como Amma, ainda na infância se sentindo valorizada por ser objeto de desejo do outro? E ao mesmo tempo cheias de energia libidinal permitir que a nossa raiva exploda no mundo? Ou será que devemos, como Camille, negar todos esses lugares impostos e, sozinhas, sustentar a dor? A dor de não se sentir aceita, não se sentir amada, não se sentir pertencente à nada nem lugar nenhum?

Eu admiro Camille pela sua coragem de não se encaixar. 
De não dar nada para esse mundo, que não a respeita. 
Agora eu entendi. 
É isso que me encantou nela.